A história dos ciganos, que hoje são cerca de 12 milhões espalhados pelo mundo inteiro, não é tão colorida
quanto eles: teve diáspora, perseguição, escravidão e genocídio
por Isabelle Somma
Em uma determinada noite do começo dos anos 40, o médico nazista alemão Josef Mengele reuniu 14 pares de gêmeos no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia. Colocou as crianças sobre sua mesa e as fez dormir. Calmamente, injetou clorofórmio em suas veias. A morte foi instantânea. Mais tarde, as abriu e meticulosamente dissecou seus cadáveres.
As crianças não eram judias. Eram de um outro grupo cuja história também é marcada por diáspora, perseguições, escravidão e genocídio, especialmente na Segunda Guerra. Os ciganos – termo genérico para designar grupos que se autodenominam rom, calon e sinti, entre outros – podem ser encontrados em várias partes do mundo, divididos em culturas, religiões e línguas diferentes. Alguns têm o dialeto, a profissão ou apenas a opção pela vida itinerante. O que todos os cerca de 12 milhões espalhados pelos cinco continentes têm em comum é uma longa história pautada pelo preconceito. Que continua ainda hoje.
Pouco se sabe sobre a origem dos ciganos – que, assim como quase tudo que diz respeito a eles, está marcada por fantasias. Alguns dizem que eles descendem de egípcios do tempo dos faraós. Outros, de uma região conhecida como “Novo Egito”, na Grécia – daí a palavra “cigano”, que vem de “egipciano”. Essa história, contudo, é totalmente descartada por estudiosos do assunto. Para eles, os ciganos teriam vindo do Paquistão e do norte da Índia, nos atuais Rajastão e Punjab. A maior prova disso vem de estudos lingüísticos. O romani, a língua falada por eles, possui grandes semelhanças com o hindi, falado na Índia. A análise biológica corrobora essa tese. Um estudo realizado com integrantes de comunidades ciganas da Europa demonstrou que era possível traçar a origem indiana de boa parte dos ciganos pesquisados.
Grupo migrante
Dali, um grande contingente teria partido em uma espécie de diáspora. Ainda hoje existem comunidades ciganas na Ásia, assim como nos locais por onde passaram até chegar à Europa, como o Oriente Médio e norte da África. “Por que e quando eles deixaram a Índia, quais foram os grupos que fugiram e como se relacionavam entre eles ainda é tema de debate entre os estudiosos”, diz David Nemeth, professor de Geografia e Planejamento da Universidade de Toledo, em Ohio, nos Estados Unidos, especialista em povos nômades. “Alguns dizem que todos deixaram a Índia de uma vez, há mil anos. Outros dizem que eles foram saindo gradualmente.”
Um problema, de acordo com os especialistas, é falar dos ciganos como se eles fossem um grupo racial, um povo. “A explicação da origem indiana dos ciganos dá a falsa impressão de que eles são um grupo fechado, constituído como uma unidade isolada na Índia e que viajou mantendo essa integridade”, afirma a antropóloga Florencia Ferrari, cuja pesquisa de doutorado na Universidade de São Paulo é sobre ciganos de São Paulo. Na verdade, eles apresentam uma grande mistura.
O estudo lingüístico aponta uma provável data em que a maior leva de ciganos teria deixado seu território de origem: meados do século 11. Esse período coincide com a invasão, ao norte do subcontinente indiano, do sultão persa Mahmoud Ghazni (971-1030). Acredita-se que o sultão vitorioso teria expulsado essa população, provavelmente uma casta de guerreiros, do território conquistado entre 1001 e 1026.
Há outras teorias para o movimento dos ciganos. Alguns especialistas supõem que eles pertençam a um antigo grupo de viajantes que nunca parou de se deslocar. Outros, que eram grupos sedentários forçados a deixar a Índia devido à expansão de outros povos. Também não se descarta que eles eram párias expulsos de suas terras.
Tudo isso é suposição por causa da falta de relatos escritos sobre o assunto. Os ciganos mantêm sua história através da tradição oral – e muito do que se passou entre eles foi perdido. Segundo Isabel Fonseca, autora de Enterrem-me em Pé – A Longa Viagem dos Ciganos, o primeiro documento escrito que menciona os ciganos é um contrato de compra e venda do século 10. Mais tarde, monges relatam sobre os “atsiganoi”, povo itinerante de adivinhos e ventríloquos que visitou o imperador bizantino Constantino IX em 1054.
A diáspora cigana levou-os a migrarem a oeste, fazendo com que se espalhassem pela Europa a partir do século 14. “Quando apareceram pela primeira vez na Europa, os ciganos apresentaram-se como peregrinos e liam a sorte: duas boas profissões numa época de superstição”, afirma a autora. Os grupos começaram a percorrer com maior assiduidade certas regiões, e acabaram adotando a língua e a religião delas. Mas sem perder seus próprios costumes e língua.
Perseguição e caça
Dessa mesma época já datam os primeiros registros de perseguições contra os ciganos. Em 1471, leis contra eles foram aprovadas na Suíça. Na península Ibérica, a chamada Reconquista Cristã, em 1492, significou não apenas a expulsão de árabes e judeus, mas de ciganos também. No século 16, os ciganos também foram expulsos da França, durante o reinado de Luís XII, e da Inglaterra, pelo rei Henrique VIII. Mais tarde, Elizabeth I fez pior: durante seu reinado, entre 1558 e 1603, uma lei tornava ilegal ser um cigano. Isso quer dizer que a pessoa era condenada à morte simplesmente por ser filha de pais ciganos. “Eles se tornaram os últimos bodes expiatórios dos males sociais da sociedade do período Tudor”, afirma Thomas Acton, professor de Estudos Romani da Universidade de Greenwich, Inglaterra.
A perseguição nos Bálcãs foi ainda mais aguda. A partir do século 13, os ciganos foram vistos como estrangeiros que não eram bem-vindos. Acabaram escravizados. A libertação ocorreu apenas em 1864. Na Romênia não foi diferente: os ciganos foram feitos escravos lá até o século 19. Em 1445, o príncipe Vlad Dracul, da Valáquia (antiga província da Romênia), escravizou em seu país cerca de 12 mil pessoas da Bulgária. Essa gente, de acordo com registros da época, “parecia egípcia”. Vlad Dracul, apenas a título de curiosidade, é pai do príncipe que ficou conhecido pela alcunha de Drácula.
A partir do século 16, países como Suíça, Holanda e Dinamarca, passaram a promover o que ficou conhecido como “caçada aos ciganos”. Ela funcionava mais ou menos como uma caçada a raposas mesmo, quase um esporte. Não era preciso o sujeito ter cometido crime algum para ser aprisionado ou morto como um animal. Recompensas e honras eram prestadas aos que participavam das caçadas. Na Dinamarca, por exemplo, uma grande caçada foi marcada para o dia 11 de novembro de 1835. O resultado foram 260 homens, mulheres e crianças presos ou mortos.
Preconceito
Alguns pesquisadores acreditam que a origem do preconceito contra as comunidades ciganas esteja relacionada com as profissões com as quais eles ganhavam a vida. Segundo Nemeth, os ciganos historicamente lidam com três ramos de ocupação nada bem vistos na Idade Média. Eles estão associados à indústria da “diversão”, como músicos, dançarinos e adivinhos, da “morte”, como açougueiros, e da “sujeira”, como ferreiros. Várias lendas populares pipocaram na Europa na Idade Média. Uma delas é a de que o ferreiro que fez os pregos colocados em Jesus na cruz era cigano. Jesus então teria amaldiçoado todos os ciganos com uma vida de vagância.
Aliás, é o nomadismo o fator apontado como o principal motivo da desconfiança que vários povos alimentaram contra eles. “A estigmatização da vida errante se tornou um fator de demonização daqueles ciganos que eram nômades comerciais”, afirma Acton. A necessidade de deslocar-se pela lunga drom – ou “longa estrada”, em romani – , geralmente em coloridas caravanas, fez com que os ciganos tivessem um contato mínimo com o mundo gadjikane – “não-cigano”. Assim, o grupo continuaria com seu estilo de vida. A história da polonesa Papuzsa (“boneca” em romani) é prova de que muitos grupos temem que seu modo de vida seja alterado pela revelação de seus costumes. Harpista, ela compunha música e poesia contando os sofrimentos de seu povo. No fim da década de 50, um poeta publicou a tradução de seus poemas em polonês, à revelia da vontade de Papuzsa. Resultado: foi expulsa da comunidade por traição. Morreu em 1987, só e esquecida.
A partir do fim do século 18, com a ascensão do capitalismo industrial e a rápida urbanização, o que era visto como uma diferença apenas cultural passou a ser visto como um comportamento motivado por uma questão racial. O racismo culminou com a Segunda Guerra Mundial. Além de judeus, homossexuais, comunistas e opositores do regime, os nazistas também perseguiram implacavelmente os ciganos. Eles foram deportados para campos de concentração e foram alvo dos einsatzgruppen, esquadrões móveis de extermínio. Não há estatísticas exatas sobre o número de vítimas, mas estima-se que, dos cerca de 1 milhão de ciganos que viviam na Europa antes da guerra, pelo menos 500 mil tenham sido eliminados no Holocausto.
Com o fim do conflito, muitos deles imigraram para os Estados Unidos – que, atualmente, é o país com o maior número de ciganos no mundo, cerca de 1 milhão. A última lei contra os ciganos no país, que impedia a entrada deles no estado de Nova Jersey, só foi eliminada na década de 90. Os que ficaram na Europa, no entanto, continuaram a ser sistematicamente perseguidos por diferentes governos. Na Bulgária, a língua e a música ciganas foram proibidas. Na antiga Tchecoslováquia e na Noruega, políticas oficiais promoveram campanhas de esterilização de mulheres ciganas. Até 1972, o governo suíço tomava crianças ciganas de seus pais para serem criadas por famílias não-ciganas.
A maioria deles, 8 milhões, ainda vive na Europa. É a maior minoria sem país do continente. A partir de 1989, começaram a surgir partidos políticos ciganos, que tentam reverter políticas discriminatórias. Atualmente, há programas de televisão falados na língua romani na Romênia e na Macedônia. Se, por um lado, isso pode ser um fator que ajude a diminuir o preconceito em alguns locais, por outro pode também significar a absorção dos ciganos pela cultura gadjikane. O destino deles, porém, é difícil de ser lido.
Ciganos pelo mundo
A relação entre os vários grupos ainda não é conhecida
Há diversos grupos de ciganos espalhados pelos cinco continentes. Abaixo estão os principais. Muitos falam uma língua próxima, o romani (ou romanês) – com muitas palavras emprestadas de línguas locais. Grupos que vivem no Brasil, por exemplo, dizem: “Vamos pinhá o paim”. Querem dizer: “Vamos beber água” – a estrutura é a do português, mas com palavras em romani. Grupos de viajantes, como artistas circenses, são confundidos com os ciganos por serem nômades.
Erlides
Também conhecidos como yerlii ou arli, os erlides são mais comuns em comunidades localizadas no sudeste da Europa e na Turquia. Muitos deles são muçulmanos ou cristãos ortodoxos. Há ainda pequenos grupos na Palestina, Jordânia e também no Iraque.
Roma
Os rom, ou roma, têm origem não-ibérica e são o grupo mais numeroso. Tanto que possui subgrupos, como os kalderash, matchuara, lovara e tchurara. Podem ser encontrados na Europa (especialmente nos Bálcãs), nos Estados Unidos e no Brasil. “Muita gente confunde os roma com os romenos. Há ciganos romenos, mas nem todo romeno é cigano”, diz o professor David Nemeth.
Gitanos
Chamado também de calon, o grupo é encontrado principalmente na península Ibérica, no norte da África e no sul da França. Na Espanha, os gitanos são associados à música e à dança – o flamenco é considerado de origem gitana. O mais famoso é o grupo francês Gipsy Kings. No Brasil, há uma grande quantidade de grupos calon, que se dedicam ao comércio de carros, mantas e ouro – as mulheres, à leitura da sorte.
Sinti
Os sinti ou manouch também reconhecem uma origem na Índia e praticam o nomadismo. Eles falam a língua sintó e são encontrados principalmente na Alsácia, entre outras regiões da França, na Alemanha e na Itália. Há poucos deles no Brasil, chegados também no século 19.
Romnichal
O grupo mais numeroso na Grã-Bretanha, encontrado nos Estados Unidos e na Austrália, é chamado também de rom’nie. Sua história remonta ao século 16, quando teriam chegado à Inglaterra. Foram expulsos e perseguidos no país ao longo dos séculos, mas ainda são numerosos lá.
JK era cigano
Bisavô do presidente brasileiro chegou aqui no século 19
A história dos ciganos no Brasil se confunde com o início de nossa colonização. Segundo o geógrafo Rodrigo Teixeira Corrêa, autor de História dos Ciganos no Brasil, o primeiro registro é de 1574, quando o comerciante João Torres, sua mulher e seus filhos foram expulsos de Portugal para cá. A maioria dos que aqui chegaram veio da península Ibérica, mas os que imigraram mais recentemente, no século passado, vêm da Europa Oriental. No século 16, os ciganos degredados se instalaram principalmente na Bahia. O comércio é a principal atividade ligada a eles até hoje. Há registros, do século 18, da presença de comunidades nômades em Minas Gerais – mas apenas dão conta de problemas em que eles se envolviam, como roubos e brigas. Em Minas, mais precisamente em Diamantina, viveu a família do mais ilustre descendente de cigano do país. O primeiro cigano não-ibérico a aportar no Brasil foi Jan Nepomuscky Kubitschek, no século 19. Reconheceu o sobrenome? Seu bisneto, Juscelino, assumiu a presidência do país em 1956.
Vários ciganos, como ele, deixaram a vida nômade, mas há milhares que ainda vivem dessa forma nos grandes centros urbanos. Há entre eles artistas circenses e comerciantes – e, claro, mulheres que lêem a sorte. Não há fontes seguras nem censo sobre o número de ciganos no Brasil – acredita-se que haja cerca de 600 mil. Assim como em outros países do mundo, o principal problema da comunidade é a documentação. Aqueles que não possuem endereço fixo têm problemas para conseguir acesso a serviços públicos. “Não possuir documento é uma opção deles”, diz a antropóloga Florencia Ferrari. “A questão fascinante é como e por que eles escolhem viver assim.”
Costumes próprios
Grupos evitaram casamentos com não-ciganos na tentiva de preservar a cultura
Por causa do convívio com os gadjikane (“não-ciganos”), os ciganos mantiveram determinados costumes para não se “contaminar” pela cultura externa. Evitaram durante séculos, por exemplo, casamentos com não-ciganos. Alguns deles só falam romani. “Para se referir a um não-cigano, há ciganos no país que o tratam por ‘brasileiro’. Isso reforça a idéia de que eles são supranacionais”, diz a antropóloga Florencia Ferrari. Outra característica é que eles também evitaram freqüentar escolas. Segundo a pesquisadora Isabel Fonseca, cerca de três quartos das mulheres ciganas são analfabetas. Isso se mostra na própria língua romani, que não tem forma escrita. Nela, não existem palavras específicas para “escrever” e “ler”. Em seu lugar, são usadas palavras da língua local, onde quer que o grupo se encontre, ou adaptações. A palavra gin, que significa “contar”, faz as vezes de “ler”. Outro costume cigano é as mulheres lerem a sorte, além de usarem saias longas – mostrar os joelhos é um tabu para elas, assim como cortar as unhas. A segregação dos sexos também é um hábito. Homens e mulheres, por exemplo, não comem juntos. As comunidades ciganas valorizam os ritos, como casamento e funeral. Os casamentos são resultado de combinações entre famílias. Os noivos se casam muito jovens. Aos 10 anos ou menos, logo após a primeira menstruação, as meninas já estão aptas a contrair matrimônio. Além disso, a religião não ocupa lugar privilegiado na vida dos ciganos. Há comunidades que ainda preservam algumas características do shaktismo, uma corrente do hinduísmo. Alguns símbolos da antiga religião são identificados pelos gadjikane com a maior parte dos ciganos, como o tridente, arma utilizada pelo deus hindu Shiva. A palavra para tridente, em romani, é a mesma que alguns ciganos cristãos utilizam para cruz. Portanto, o que houve na maioria dos casos foi a assimilação das religiões por onde as correntes migratórias passaram. Na Europa e nas Américas, o cristianismo é a principal fé. Já no Oriente Médio e nos Bálcãs, há ciganos muçulmanos.
Saiba mais
Livros
Enterrem-me em Pé – A Longa Viagem dos Ciganos, Isabel Fonseca, Companhia das Letras, 1996.
A autora se embrenhou entre grupos de várias partes do mundo para descrever sua cultura e sua história.
História dos Ciganos no Brasil, Rodrigo Corrêa Teixeira, Núcleo de Estudos Ciganos, Recife, 1999
O autor apresenta a trajetória dos ciganos ibéricos e não-ibéricos no país.
Palavra Cigana – Seis Contos Nômades, Florencia Ferrari, Cosac Naify, 2005
A antropóloga reúne aqui contos da tradição oral de comunidades ciganas do mundo todo.